Deus nos fala com palavras humanas- Nélia Frota

Por 15 de fevereiro de 2016 Doutrina Nenhum Comentário

Nós cristãos acreditamos que Deus intervém na vida dos homens, manifesta-se e deseja revelar o seu desígnio, a sua vontade ao homem. A profissão de fé da Bíblia nos diz simplesmente: “Deus nos fala na Sagrada Escritura”, mas nos fala por meio de homens e de maneira humana. Em nenhum lugar da Bíblia encontramos uma só passagem em que Deus nos fala diretamente.

Ele sempre nos fala através deste ou daquele homem, respeitando sua própria maneira de ser, assumindo a linguagem humana. Deus, para nos salvar, faz de tudo para estar próximo de nós, assumindo a palavra humana para se revelar a nós.

Um dos principais conceitos a ser examinado para uma melhor compreensão da Bíblia é o conceito da inspiração. O que significa dizer que os livros bíblicos são inspirados, de onde vem esta inspiração, até que ponto o que é escrito representa a mensagem de Deus ou do hagiógrafo (escritor sagrado)?

Ao longo da história, os estudiosos procuraram esclarecer esse conceito básico e sempre houve divergências entre eles. Apresentamos aqui algumas reflexões sobre esse importante conceito.
Na inspiração distinguimos dois aspectos: dogmático e especulativo.
0 dogmático pode ser expresso como resposta à pergunta: por que acreditamos que a Bíblia é um livro inspirado?

Isto não se pode provar pela própria Bíblia. Busca-se então provar pelo fundamento histórico. Os evangelhos, por exemplo, são históricos. Há uma tradição desde os tempos dos Apóstolos que cita a Escritura como autoridade divina ( Mt 1, 22; Mt 22, 31; Mc 7,10; Jo 10, 35; At 1,16; Lc 22, 37; Heb 3, 7; 10,15 ). Em 2Tim 3,16, aparece pela primeira vez a palavra ‘theopneustos’, ou seja, inspirada por Deus. Mas, em que consiste a inspiração?
É muito discutido o modo como se dá a inspiração do escritor sagrado. Alguns afirmam que era um ditado. Mas no texto de II Mac 2, 19-23, o autor se refere a um resumo de 5 livros em um só, cujo resumo lhe custou “suores e noites de vigília”. Como é que foi um ditado se houve o esforço dele para elaborar a síntese? Do mesmo modo Lucas (Lc 1,1) escreve: “depois de haver diligentemente investigado tudo desde o principio, resolvi escrever…”, logo não foi simplesmente um ‘ditado’ da parte de Deus.
Em reação à teoria do ditado veio outra que disse o contrário: a inspiração é a aprovação que a Igreja dá ao livro. O fato de estar colocado no cânon é a garantia da própria inspiração. Esta tese foi defendida por poucos e não teve grande aceitação nos meios católicos.
O Cardeal Franzelin propôs uma nova fórmula: nem tudo é de Deus nem tudo é do homem, mas as ideias são de Deus e as palavras são do homem. Obteve certo sucesso, mas ainda não explicou de todo.

São Tomás de Aquino propusera a teoria da “causa instrumental”: são os dois ao mesmo tempo – Deus e o Homem. Ambos estão presentes em toda a obra, Um é o autor principal e o outro o autor secundário. A inspiração eleva, sublima as faculdades do autor. Pode até ser admitida esta teoria, entretanto, convém lembrar que tudo que está na Bíblia é inspirado, embora nem tudo seja revelado.
Em II Mac, conforme mencionado acima, o autor se refere a um resumo do livro que Jasão escreveu. De cinco volumes ele reduziu a um só.

Como dizer que isto é palavra inspirada por Deus? Como se explica aí a inspiração divina? Comecemos por analisar as operações do intelecto: apreensão, juízo e raciocínio. Elas seguem um grau de aprofundamento e refinamento do saber. Pode-se ter uma inspiração de Deus logo no primeiro momento (na apreensão), como se pode ter depois, no juízo ou também nos dois.

Quando a inspiração é logo na apreensão, se diz ‘revelação’. Quando, como no caso do II Mac, a apreensão é do autor, a inspiração se dá no segundo momento, ou seja, no juízo, enquanto na apreciação que ele faz da obra está sendo iluminado pelo Espírito Santo.

Na confecção destes livros, a questão da inspiração é que o autor estava iluminado pelo Espírito Santo para dizer o fato corretamente, sem poder errar no julgamento. Embora ele não esteja consciente disso, a ação do Espírito Santo está sendo exercida no seu intelecto.
A escritora Adélia Prado com seu poema chamado ‘Direitos Humanos’, nos ajuda a esclarecer melhor o assunto desta ‘parceria’ de Deus com o homem nos escritos bíblicos:
Direitos humanos
Sei que Deus mora em mim como sua melhor casa.
sou sua paisagem, sua retorta alquímica
e para sua alegria seus dois olhos.
Mas esta letra é minha.
(Oráculos de Maio, p.73.)
Adélia Prado

Mas, pode-se questionar: como se sabe se ele foi ou não inspirado quando nem ele mesmo pode perceber isso? Aí passa a ser uma questão de fé. Tenta-se explicar o fato, mas não se afirma que seja assim. O discernir se o livro é ou não inspirado, dado o que acontece com o autor, é alçada da Igreja, que também é inspirada pelo Espírito Santo. É uma questão fundamentalmente de fé.
Por isso, para a definição dos livros autênticos, reconhecidos pela Igreja Católica, os Cânones foram aprovados em Concílios, nos quais se discutiram certas dúvidas a respeito de alguns livros, se eram ou não inspirados.

Nas discussões, procurou-se ver na história da Igreja, desde os cristãos primitivos até aquela época, quais os livros que durante os séculos sempre foram lidos nas Igrejas. Baseada no consenso, ela constituiu o cânon. Sem dúvida, a tradição antiga é mais fidedigna, pois está mais próxima dos tempos apostólicos.
Para se entender cada página da Bíblia deve-se ter em mente a finalidade, a intenção do autor ao escrever cada parte do livro. Não se pode abrir o livro em qualquer parte e ler tudo com o mesmo espírito. Na antiga concepção de inspiração (ditado) não se considerava esse problema.

Tudo que lá estava se acreditava “ao pé da letra”. Não se podia duvidar. Mas esta é hoje uma prática mais comum em algumas igrejas protestantes. Geralmente, praticada por pessoas com conhecimentos teológicos limitados e reducionistas.
Uma consequência direta da inspiração é o dom da inerrância. Se o livro é inspirado, logo, o que contém é verdade. Porém esta verdade não está ali imediatamente evidente. Ela precisa ser alcançada pela reflexão animada pela fé, ou seja, a razão e a fé ajudando-se mutuamente.
A Bíblia não foi escrita por uma única pessoa, muita gente deu sua contribuição. Homens, mulheres, velhos, cada um a seu modo. Também a Bíblia não foi escrita de uma só vez. Primeiro se viveu os acontecimentos, depois estes foram contados oralmente e, só muito depois, é que foi escrito para recordar o que se viveu e oferecê-lo como lição de vida.

As palavras faladas e escritas de todos esses homens e mulheres contribuíram muito para formar e organizar o povo de Deus.
A Bíblia reúne textos de pessoas que viveram situações, experiências, dificuldades e conquistas das mais variadas. Afinal de contas, a vida de fé é uma aventura, uma busca de Deus, da vida, dos irmãos e das irmãs.
A Bíblia dá testemunho de como as pessoas buscaram relacionarem-se com Deus e entre si mesmas nos mais variados momentos: tristeza, alegria, guerra, exílio, vitória, morte.
Daí a necessidade para se entender melhor os textos da Bíblia, de se levar em conta aquilo tudo que nela está escrito, pois é fruto de muita vida, muito esforço, muito sofrimento, muita esperança, muita comunicação.  A Bíblia antes de ser escrita foi vivida e contada, e como!

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